sexta-feira, 23 de maio de 2014

a vida e assim






EL SÍMBOLO DE TODA NUESTRA VIDA

Hay noches que debieran ser la vida.
Intensas largas noches irreales
con el sabor amargo de lo efímero
y el sabor venenoso del pecado
- como si fuésemos más jovenes
y aún nos fuese dado malgastar
virtud, dinero y tiempo impunemente.

Debieran ser la vida,
el símbolo de toda nuestra vida,
la memoria dorada de la juventud.
Y, como el despertar repentino de una vieja pasión,
que volviesen de nuevo aquella noches
para herirnos de envídia
de todo cuanto fuimos y vivimos
y aún a veces nos tienta
con su procacidad.
Porque debieron ser la vida.

Y lo fueron tal vez, ya que el recuerdo
las salva y les concede el privilegio de fundirse
en una sola noche triunfal,
inovidable, en la que el mundo
pareciera haber puesto
sus llamativas galas tentadoras
a los pies de nuestra altiva adolescencia.

Larga noche gentil, noche de nieve,
que la memoria te conserve como una gema cálida,
con brillo de bengalas de verbena,
en el cielo apagado en que flotan
los ángeles muertos, los deseos adolescentes.

Felipe Benítez Reyes
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segunda-feira, 19 de maio de 2014

da literatura









E TUDO O RESTO É LITERATURA


A palavra mais forte, mais verdadeira, que toca no seu próprio fim, na sua matéria mais densa e profunda, pode não ser a palavra dita “literária” (muito embora, paradoxalmente, consiga fazer-nos acreditar na existência da literatura), não ter a assinatura de um escritor, nem realizar o esforço de se apresentar sob a forma de poema, de romance, de texto em prosa, de livro. Aliás, os livros, cujo regime de apresentação na cena da literatura é, em geral, o da idade do narcisismo, da regressão a uma infantilidade que leva as pessoas a quererem “exprimir-se” e a introduzir o odioso “eu” por todas as frestas e em todos os salões de festa a que acedem (a estupidez, diz algures Deleuze, nunca é muda nem cega), raramente têm um lugar diferencial, uma função de negatividade, no meio do ruído. Palavras fortes, capazes de nos fazer perceber que fomos expropriados sem remorso e estamos imersos na pobreza das palavras que escondem a nossa jornada, são as que podemos ouvir em Vidros Partidos, o filme com que Víctor Erice respondeu a uma encomenda de “Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura”. Nesse filme/documentário, ouvimos o testemunho de homens e mulheres que trabalharam numa fábrica de tecidos do Rio Vizela, na região do Vale do Ave, fundada em 1845 e encerrada em 2002. Eles contam a sua experiência na fábrica e comentam uma foto antiga, que parece ter sido feita numa ocasião festiva, onde aparecem, reunidos, ao longo de mesas de cantina, os operários de então. A foto é inquietante, pelo modo como todos aqueles homens e mulheres, sujeitos de uma história que chegou há muito ao seu fim e que nós já só conhecemos da historiografia, olham para nós e nos interpelam. Víctor Erice pôs alguns ex-trabalhadores da fábrica encerrada a recitar, de cor, diante da câmara, o texto com que prestaram o seu testemunho. Isto é: a versão inicial do texto foi arranjada, montada, cortada (mas não reescrita com outras palavras), e depois dita pelos seus autores, que passaram assim a ser também actores da sua própria história. Uma mulher, velha e debilitada, aproveita a ocasião para ler um poema que leva consigo, de uma prima que “escrevia muito bem, desde muito nova”. E esse poema, que não interrompe nada e apenas prolonga o fluxo das palavras daquela mulher como um fluxo poético (como aliás, o de todos os outros ex-trabalhadores da fábrica que testemunham no filme de Erice), soa-nos como algo capaz de dar a ver a vacuidade da literatura e os seus abjectos artifícios – aquela que chega até nós mediada pelos protocolos canónicos da instituição literária. Tal poema é um antídoto contra a saturação intrínseca à indústria literária, essa coisa ignóbil que dissimula a nossa própria morte. O que as palavras daquela mulher nos fazem perceber (assim como a de todos os outros trabalhadores que comparecem no filme, sem poemas para ler, mas com palavras próprias para dizer), muito especialmente quando recita o poema da sua prima, é que nós chegámos demasiado tarde à literatura, quando ela já chegou ao seu fim. Nós, leitores, vós, escritores, jamais conseguiremos atingir, perante a palavra literária, aquele estado de encantamento, que não se confunde com nenhuma espécie de ingenuidade. Para aquela trabalhadora, a tragédia da história redime-se através de um poema que nunca tinha encontrado o seu público; para nós, tudo o resto é literatura. Aquele poema resplandece sem assinatura; nós, só raramente conhecemos um escritor que não seja ao mesmo tempo jornalista, escritor-jornalista com uma missão de reportagem de si próprio e da sua obra.

- António Guerreiro
in Ípsilon (16.05.2014)


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quinta-feira, 1 de maio de 2014

voo partilhado






"Maio, 1
Dia dos Trabalhadores

Tecnologia do voo partilhado: o primeiro pato que levanta voa abre caminho ao segundo, que limpa o caminho ao terceiro, e a energia do terceiro alça o quarto, que ajuda o quinto, e o impulso do quinto empurra o sexto, que empresta vento ao sétimo…
Quando se cansa, o pato que vai na frente passa para a cauda do bando e deixa o seu lugar a outro, que sobe ao vértice desse V que os patos desenham no ar. Todos vão mudando de lugar, atrás e à frente; e nenhum se considera superpato por voar à frente, nem subpato por marchar atrás."

Eduardo Galeano, Los Hijos de los Días, Madrid, Siglo XXI Editores
(tradução da P. Godinho,
img: Paul Strand, The Scythes, Luzzara, Italy, 1953)